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Terceiro debate da série Diálogos DC 90 anos contou com presença de 3 lideranças e discutiu a qualidade de vida e ambiental
Por: Thaíne Belissa Em 1 de setembro de 2022
“Não existe lá fora”. A frase, que foi repetida algumas vezes durante o terceiro debate do Diálogos DC 90 anos, resumiu um dos argumentos centrais da rica discussão sobre “qualidade de vida e ambiental”. O conceito de saúde única, em que vida humana e vida ambiental são indissociáveis, e a ideia de que as ações individuais refletem no bem-estar coletivo, marcaram as participações dos convidados. Enquanto falavam sobre saúde e meio ambiente na perspectiva de um mundo globalizado e com uma memória tão viva de uma pandemia, eles reafirmaram: “Não se pode falar em ‘lá fora’, o problema de um planeta adoecido é ‘bem aqui’ e é de todos”.
O debate, lançado hoje no canal do DIÁRIO DO COMÉRCIO no Youtube, faz parte de um ciclo de discussões com temas baseados nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), instituídos pela ONU em 2015. O Diálogos DC está no seu 6º ano de realização e, em 2022, acontece em um novo formato em comemoração aos 90 anos do DIÁRIO DO COMÉRCIO. Ao todo, serão 5 debates, que começaram em julho e vão até novembro.
Para o terceiro debate, o DIÁRIO DO COMÉRCIO convidou três lideranças que representam a diversidade de perspectivas para a expressão “qualidade de vida”. A presidente da Associação Mineira de Indústria Florestal (Amif), Adriana Maugeri, falou sobre meio ambiente e produção sustentável. Já a médica infectologista e consultora de Analytics no departamento de Big Data do Hospital Albert Einstein, Luana Araújo, contribuiu com sua bagagem na área de saúde pública. E o urbanista e professor da UFMG Roberto Andrés trouxe a perspectiva da vida na cidade e cases de projetos de mutirões comunitários para devolver a comunidades em Belo Horizonte o acesso a recursos naturais, como a água.
Embora os debatedores venham de experiências muito distintas, eles trouxeram argumentos que convergiram para a mesma ideia: a urgência de um senso de coletividade como saída para os problemas ambientais. A presidente da Amif, Adriana Maugeri, lembrou o papel das organizações na manutenção do equilíbrio ambiental, o que inclui a preservação dos recursos naturais, mas também a qualidade de vida da população que vive no entorno de suas operações.
“A atividade da agroindústria não é o problema, mas sim como ela é feita. Existem muitas organizações que já entenderam que a permanência delas está intrinsecamente relacionada aos territórios onde ocupam. Muitas estão realizando ações que estão transformando suas comunidades porque perceberam que a dependência econômica daquele território onde estão tem que ir além da empresa. Elas sabem que, muito além de gerar emprego e impostos, precisam ajudar no desenvolvimento das comunidades”, afirmou.
Adriana lembrou que não é mais uma questão de “olhar para fora”, uma vez que os desafios ambientais não são contidos por portões ou portarias. “As corporações só vão se manter no sistema capitalista quando entenderem que elas não vão chegar ao ápice sozinhas com um entorno ruim. Para chegar aonde elas querem, primeiro terão que levar prosperidade para além de suas fronteiras”, frisou.
Ela lembrou que essa também é uma responsabilidade de cada cidadão e que não dá pra esperar um grande resolvedor dos problemas, seja no governo ou na iniciativa privada. Para Adriana, a sociedade comete um erro básico que é entender o humano como à parte da natureza. Ela destaca que esse entendimento de que somos superiores aos animais leva a um uso irresponsável dos recursos naturais. “Somos animais e habitamos o mesmo território que outras espécies. Mas só a espécie humana causa essa desarmonia e esse desequilíbrio com sua vivência egocêntrica”, disse.
A infectologista Luana Araújo lembrou que a visão do ser humano como superior foi um desvio da humanidade, algo que a sociedade passou a acreditar, ignorando um conceito básico de “saúde única”. “Essa ideia de saúde humana e meio ambiente como uma coisa só está sendo mais falada agora, mas não é novidade. Os gregos e os romanos já entendiam que não existe essa separação e tinham essa noção de pertencimento à natureza de maneira equânime. Mas fomos nos convencendo de que a sapiência humana está acima de todos, enquanto na verdade somos limitados por não entender a saúde única”, disse.
A médica lembrou que a pandemia da Covid-19 é o exemplo mais vivo do alto custo que pagamos por desconsiderarmos essa conexão entre saúde humana e meio ambiente. “A Covid é fruto da nossa péssima interação com o meio ambiente. Uma relação cruel, exploratória e que fez com que a gente se expusesse a ambientes para os quais não temos imunidade. E isso vai se repetir se a gente não entender que essa separação de saúde e meio ambiente não existe. Continuamos avançando a fronteira agrícola na Amazônia e sabemos que há muitos vírus conhecidos e outros desconhecidos aos quais podemos nos expor se isso continuar”, alertou.
Para a infectologista, qualquer solução para a melhoria da qualidade de vida e ambiental passa por um entendimento básico de coletividade. “A primeira coisa é entender que não existe mais eu. Acabou o ‘eu’ na economia, na sociedade, na saúde. O mundo é globalizado e não tem volta. O que aconteceu numa cidadezinha na China em poucos meses virou uma pandemia que só no Brasil levou 700 mil vidas. Se a gente não pensar no coletivo, a gente não protege o indivíduo. Embora as ações sejam individuais, o pacto é coletivo entre humanos, animais e natureza”, disse.
Embora os conceitos de “doença” e “desmatamento” sejam os primeiros que vêm à mente quando se fala em problemas de saúde e de meio ambiente, a verdade é que esse tema da qualidade de vida e ambiental aponta para muitos outros desafios. As questões da distribuição desigual de alimentos, o desperdício e a fome são alguns deles.
A mediadora do debate, Paola Carvalho, lembrou que, segundo o Mapa da Fome, já são 61 milhões de brasileiros enfrentando dificuldade para se alimentar. “Comentamos aqui sobre a economia verde e sustentável, mas também se fala muito da economia regenerativa. É que o impacto zero já não é mais suficiente. O saldo está negativo, o planeta já consome mais do que a Terra é capaz de produzir. E essas 61 milhões de pessoas não conseguem fazer muito por si, então outros organismos da sociedade teriam de assumir essa responsabilidade”, comentou.
Adriana Maugeri lembrou a riqueza do Brasil na produção de alimentos e o contraste disso com os números alarmantes de pessoas em situação de insegurança alimentar. “Raros países têm o potencial do Brasil com solo, clima, conhecimento a favor da agricultura, e, mesmo assim, a gente tem miséria. O que estamos fazendo de errado?”, questionou.
A infectologista Luana Araújo também falou sobre a incoerência de se viver em um país produtor de alimentos, mas com uma população com fome. “A gente se vangloria de uma produção que é, inclusive, exportada, mas não conseguimos dividir o alimento dentro do próprio País. É preciso uma noção de exploração de forma sustentável. Precisamos sair do falar e tangibilizar soluções”, cobrou.
E se há desigualdade na distribuição de alimentos, o mesmo pode ser dito sobre o acesso a outros recursos naturais que garantem a qualidade de vida, como a água. O urbanista Roberto Andrés lembrou que o País ainda sofre com o problema crônico de saneamento básico, que gera impacto no meio ambiente e na saúde da população.
“Não é aceitável que a gente não faça tratamento de esgoto, principalmente em um país como o Brasil com tanta riqueza. Temos problemas graves de doenças, principalmente entre a população mais pobre, que está sujeita ao esgoto a céu aberto, crianças perdendo aula, grande impacto na saúde pública por um problema básico que deveria ser prioridade zero”, criticou.
Ele também lembrou do acesso às águas para lazer, que acaba sendo privilégio de uma parcela da população. “As águas são bens públicos essenciais, mas quem tem direito ao lazer aquático? Só a elite que pode ir ao clube ou tem piscina em casa. Em Belo Horizonte temos muitos rios e córregos que poderiam ser usados por todos, mas tratamos muito mal essas águas. Jogamos esgoto, tampamos, construímos nas beiradas”, disse.
O urbanista destacou que as cidades deveriam ser espaços de promoção de saúde e conexão com a natureza, mas isso não acontece porque a maioria delas não foi projetada com esse intuito. “Como a fundação das cidades não foi pensada no bem-estar coletivo, herdamos problemas graves como o excesso de carros, que gera poluição, e a desigualdade de acesso a áreas verdes”, pontuou.
Pensando nessa cidade mais democrática no que diz respeito ao acesso aos recursos naturais, o professor desenvolve junto aos seus alunos do curso de Arquitetura da UFMG ações de mutirões coletivos para transformar algumas comunidades em Belo Horizonte. Essa mobilização já alcançou bairros como Ribeiro de Abreu, Novo Aarão Reis e Jardim Felicidade, que são áreas localizadas nas bordas de rios.
Entre as ações realizadas estão a construção de praças, espaços com brinquedos para crianças e até um clubinho a céu aberto com piscina e chafariz. Segundo Andrés, a ação dos alunos costuma ser apenas o início da transformação nessas comunidades, pois depois que o mutirão acaba, os moradores se apropriam do projeto e o mantém.
“No Ribeiro de Abreu, por exemplo, tivemos notícias de que a comunidade fez um campo de futebol, uma agrofloresta e reformou os brinquedos da pracinha. Veja o caso do clube a céu aberto: quantas nascentes temos na cidade e que poderiam ser exploradas assim? E quanto isso custaria? Muito pouco porque esse é um projeto simples feito com alunos do 1º período de Arquitetura. Esse é um exemplo de como poderíamos tratar as bordas dos nossos rios se a gente levasse em consideração que as águas sujas proliferam doenças, mas águas limpas fortalecem a nossa saúde”, frisou.
“O que fazer, então?”. Diante de tantos desafios, essa parece ser a principal pergunta a ser feita. E é justamente o questionamento que o diretor do Instituto Orior, Raimundo Soares, faz aos convidados, lembrando-os de que cada cidadão tem uma área de influência e é, portanto, um agente de transformação. “A finalidade de um governo é promover a qualidade de vida e o bem-estar da sua sociedade e um governo que não faz isso não serve como governo. Então, a questão que eu queria colocar para todos é: o que podemos fazer para promovermos um outro mundo, uma nova forma de viver e conviver?”, perguntou.
Adriana Maugeri afirmou que essa resposta passa por um exercício de assumir responsabilidades e deixar de culpabilizar os outros. “Colocamos sempre a responsabilidade no outro e há uma cegueira em relação a nós mesmos. A gente pensa em como pode ajudar o mundo, mas temos que ir reduzindo essa abrangência: como posso ajudar o país, a cidade, a comunidade, minha casa?”, sugeriu.
Luana Araújo, por sua vez, frisou a importância das lideranças para a melhoria da qualidade de vida e ambiental. Mas lembrou que isso vai além dos governos, que são transitórios e “funcionários do povo”. “Não existe mudança sem multiplicação de liderança. E líder não é só quem está em destaque, é quem assume responsabilidade, guiada por valores que precisam ser coletivos, de cidadania, de lucidez, de bom senso. Se a gente tiver esses valores no governo, na organização, na comunidade, na nossa casa, a gente vai somando para depois gerar uma transformação maior”, disse.
Para Roberto Andrés, o enfrentamento dos desafios ambientais e da saúde dependem de uma mudança radical na forma como a sociedade se organiza e da adoção de novo modelo de desenvolvimento. “A ideia de que o capitalismo nos levaria ao progresso foi testada nos últimos 30 anos e o resultado foi um aumento da desigualdade, uma sociedade adoecida, que esgarçou os recursos naturais e que não tem senso coletivo. Não dá mais pra fingir que isso não está acontecendo. A humanidade tem uma ou duas décadas para decidir se reconhece isso como problema real, rever seu modo de organização, reduzir a desigualdade, cuidar do planeta e da saúde e colocar o lucro em segundo lugar”, disse.
A presidente do DIÁRIO DO COMÉRCIO, Adriana Muls, reforçou a importância de cada um se colocar como responsável e agente indispensável na transformação por um futuro melhor. “Será que eu não posso fazer nada para evitar que alguém passe fome do meu lado? Se minha filha não tivesse comida em casa, como seria? E eu deixo isso acontecer na casa do outro? Então estamos falhando”, disse. Ela também ressaltou a necessidade de uma “inversão de processos” na condução da máquina pública. “A sociedade precisa se articular, falar qual é o futuro que ela quer e apresentar o seu projeto para o Estado”, concluiu.