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Por: Sandra Carvalho Em 13 de setembro de 2022
Com dívida externa elevada e crescimento pífio do PIB, os anos de 1980 ficaram conhecidos como “a Década Perdida”. Adicione ao quadro inflação estratosférica e aumento da desigualdade social. Foi assim não só no Brasil, mas em praticamente toda a América Latina. Países subdesenvolvidos, acostumados a induzir o crescimento com recursos externos, viram a “torneira” fechar e chegar a conta a juros elevadíssimos. O desenvolvimentismo, aos poucos, abriu o caminho para o neoliberalismo. Do ponto de vista político, ocorreram três fatos históricos no Brasil: a redemocratização, a promulgação da Constituição de 1988 e a volta de eleições diretas para presidente.
Esses são alguns acontecimentos da década de 1980 abordados nesta sexta reportagem da série “Há 90 anos”, um presente do DIÁRIO DO COMÉRCIO a leitores e internautas em comemoração aos 90 anos do jornal.
Antes de abordar os anos de 1980, é preciso lembrar do cenário herdado da década anterior. Em 1979, o mundo viveu o segundo Choque do Petróleo. O Irã, grande produtor do combustível, limitou a oferta, elevando os preços. “Parte do crescimento do Brasil registrado na década de 1970 foi possível a partir de empréstimos externos. Com o segundo Choque do Petróleo, houve uma elevação das taxas de juros americanas e, consequentemente, dificuldade do Brasil em honrar pagamentos. Isso gerou aumento da dívida externa brasileira no final dos anos de 1970 e início dos anos de 1980”, pontuou o doutor em Demografia e professor da UFMG Mario Marcos Sampaio Rodarte.
Para reduzir o déficit nas transações correntes, o então presidente do Brasil, general João Batista Figueiredo, e seu ministro do Planejamento, Antonio Delfim Netto, apostaram em maxidesvalorizações do cruzeiro, a moeda oficial. “O governo viu como solução provocar uma crise doméstica. Se reduz o nível da atividade interna, há diminuição da importação e uma parte do que é produzido internamente passa a ser exportado”, informou Rodarte. Mesmo assim, o balanço de pagamentos registrou déficits. E, como efeito colateral, a inflação anual, que já era alta, chegou a 99,25% em 1980.
Além de aumento da dívida e da inflação, a terceira herança negativa dos anos de 1970 foi o acirramento das desigualdades sociais. “O expressivo crescimento do PIB na década não significou melhora do bem-estar social do grosso da população. O censo publicado em 1980 mostrou que a riqueza ficou concentrada nas mãos de poucos”, acrescentou.
Nesse cenário, investimentos em estatais são cortados, juros internos sobem e o investimento privado declina. Em 1981, o Brasil entra numa recessão que perdura até o segundo semestre de 1982. No ano seguinte, o País recorre ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Para conseguir empréstimo, Figueiredo submete o País a um rígido programa de ajustes econômicos e fiscais. E, em 1984, a inflação anual chega a 164%. O cenário econômico caótico apontava para a derrocada do regime militar.
Com insatisfação generalizada, em 1984 é desencadeado o maior movimento popular da história do País, conhecido como “Campanha pelas Diretas Já”. Milhões de brasileiros vão às ruas em várias capitais pelo direito de escolher o presidente pelo voto direto. “O movimento veio acompanhado de uma esperança de fim da inflação, retorno do crescimento e da tão sonhada redistribuição de renda”, relatou a doutora em História Econômica Tânia Maria Ferreira de Souza, professora da PUC-Minas.
O ápice do movimento deu-se às vésperas da votação da emenda constitucional Dante de Oliveira, a “Emenda das Diretas”. “Para frustração de todos, a emenda não foi aprovada por falta de quórum. A solução política para a transição do regime militar para o democrático veio por eleições indiretas do colégio eleitoral. Dessa forma, em 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves (PMDB) se elegeu o primeiro presidente da República civil após 21 anos de ditadura, prometendo redemocratizar o País”.
Porém, na véspera da posse, dia 14 de março de 1985, Tancredo foi internado em estado grave. O vice, José Sarney (PMDB), tomou posse como presidente. Foi noticiado que Tancredo sofria de diverticulite, uma inflamação no intestino. Porém, ele passou por cirurgias e morreu de infecção generalizada no dia 21 de abril. Anos mais tarde, médicos confirmaram em livro que Tancredo, na verdade, tinha câncer. A morte do presidente-eleito, exatamente no Dia de Tiradentes, deixou o País consternado.
O governo de José Sarney ficou marcado por vários planos econômicos que tinham como objetivo principal conter a inflação. Quando Sarney assumiu a Presidência, em 1985, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) estava na casa dos 210% ao ano. Ao longo da gestão, foram lançados três planos econômicos: o Cruzado, o Bresser e o Plano Verão.
Os planos eram sempre baseados na natureza da inflação, ora inercial ora de demanda, conforme explicou o também doutor em História Econômica Marcelo Magalhães Godoy. “Todos eles têm um êxito inicial no que se refere à redução das taxas. Porém, logo depois, a inflação retorna com tendências de agravamento em relação ao ponto inicial”. A inflação de 1989, o último ano de Sarney, foi de 1.972,91%.
Para se ter uma ideia do tamanho da crise do País, em 1987, Sarney declarou moratória e suspendeu temporariamente o pagamento dos juros da dívida, o que só fez agravar o problema. Anos mais tarde, ele admitiu em entrevista que aquilo foi um erro.
Outro dado importante e que destoa do cenário negativo da economia nos anos de 1980 está relacionado ao nível de emprego. “O fato de a moeda perder seu valor fazia com que as pessoas gastassem seu dinheiro de uma forma muito rápida. Isso gerou uma manutenção do nível de emprego e fez com que a década de 1980 tivesse sinais contrários. Se por um lado cresceu pouco, por outro, essa busca em comprar as coisas antes que os preços aumentassem fez com que a economia ficasse aquecida. O Brasil começa a década com desemprego alto e termina próximo ao pleno emprego, mas com uma inflação muito elevada”, observou o doutor em Demografia Mário Rodarte.
Para avançar no processo de democratização, o País precisava ter uma nova constituição, elaborada com a participação popular. Com esse objetivo, a Assembleia Nacional Constituinte foi instaurada em 1987 e presidida pelo deputado Ulysses Guimarães (PMDB-SP). Após amplo debate, a Constituição Brasileira foi promulgada em 1988.
“A Constituição é um marco da emergência de uma série de políticas sociais e universalização de serviços públicos. O melhor exemplo é sempre o sistema de saúde pública, que efetivamente promove a universalização e se constituiu no mais importante mecanismo de transferência de renda da nossa história (…). Mas também iremos encontrar outros institutos da Constituição que nunca foram implantados devido à resistência de alguns setores dominantes”, observou Godoy.
Para o professor, o adiamento de mais de 20 anos para a implantação de uma constituição democrática trouxe prejuízos à sua plena implementação. “Quando temos a Constituição e as reformas que ela implicava, já temos outro modelo econômico, outras condições externas e uma correlação de forças bastante diferente da que tínhamos na década de 1960, quando João Goulart propõe reformas sociais. Isso irá resultar na disputa que temos até hoje entre um Estado social, referido na Constituição, e um Estado mínimo, referido no modelo neoliberal”.
A principal determinação da nova Constituição naquele período foi a realização de eleições diretas. Dessa forma, depois de 29 anos, o povo brasileiro, enfim, foi às urnas escolher o presidente da República. Fernando Collor (PRN), ex-governador de Alagoas, se elegeu em 1989 na chapa que tinha como vice o mineiro Itamar Franco. Com a promessa de “caçar marajás” e de abertura da economia brasileira, ele vence a corrida ao Palácio do Planalto com 53% dos votos válidos.
“Podemos dizer que a década de 1980 é um período de transição entre o modelo desenvolvimentista, que havia vigorado até ali, e o modelo neoliberal, que será mais dominante nos anos de 1990 a partir do governo Collor”, completou Godoy.
A situação de Minas Gerais na década de 1980 é semelhante à do Brasil. Segundo o doutor em História Econômica Marcelo Godoy, a economia terá crescimento pífio no período, com uma estrutura produtiva estagnada e agravamento de problemas sociais.
“Há uma conversão de uma economia que, nas décadas de 1960 e 1970, inclinava-se a se diversificar e ganhar complexidade, principalmente com a instalação da Fiat, para uma economia que, nos anos de 1980, reprimariza-se e se concentra na produção de bens primários, em larga medida in natura, como é o caso do café e do minério de ferro”.
A transição do modelo desenvolvimentista (Estado planejando e induzindo o desenvolvimento) para o modelo neoliberal (intervenção mínima do Estado) fica marcada em Minas. “Ocorre um esvaziamento progressivo dos aparelhos voltados à promoção do desenvolvimento regional. É processual. Não fará mais sentido a existência dessas instituições. Esse esvaziamento se dá por subfinanciamento, retirada de prerrogativas e finalização de instituições pela inadequação ao novo modelo”.
A Região Metropolitana de Belo Horizonte enfrenta problemas no setor de serviços ao longo dos anos de 1980. De acordo com a doutora em História Econômica Tânia Souza, se nos anos de 1970 a localização estratégica de Minas Gerais entre São Paulo e Rio de Janeiro beneficiou o crescimento da economia mineira com a vinda de indústrias, nos anos de 1980 essa característica geográfica atrapalhou o setor de serviços.
“A proximidade com São Paulo e Rio, praças mais avançadas em serviços, revela-se um dificultador à expansão da Grande BH como centro financeiro, comercial e de serviços. Um bom exemplo é o pequeno volume de tráfego aéreo, cargas e voos internacionais, ainda hoje”, observou Tânia.
Apesar disso, a Capital passa por algumas transformações nos anos de 1980. São inaugurados importantes espaços públicos como a praça do Papa – após a vinda do papa João Paulo II a BH, em 1980 -, o parque das Mangabeiras e o estádio do Mineirinho.
Em relação ao comércio, o historiador, doutor em Ciências Sociais e professor da PUC-Minas Marcelo Cedro destaca alguns movimentos na década. “A saturação da área central direciona a centralidade urbana para a área da Savassi (…). Com a inauguração do primeiro shopping (BH Shopping), em 1979, começa já nos anos de 1980 – e isso será mais forte nos anos de 1990 – uma tendência de que o comércio de rua e os serviços se reorientassem para os shoppings. Também é o período de inaugurações de hipermercados na Capital”, informou.
Segundo Cedro, os movimentos sociais se ampliaram com demandas por melhorias em saúde, saneamento, transporte e meio ambiente. “O movimento pelas Diretas Já ganhou corpo em fevereiro de 1984 e levou mais de 200 mil pessoas à praça da Rodoviária”.
Em relação ao transporte público, o destaque da década é a inauguração, em 1986, da linha 1 do metrô de BH – a única existente até hoje. “Também ocorre a saturação do aeroporto da Pampulha e a construção do aeroporto de Confins”, acrescentou Cedro.