Home >> Há 90 Anos >> Economia do Brasil vive ‘céu e inferno’ nos anos 70
Período tem recorde de crescimento do PIB, mas riqueza permanece nas mãos de poucos
Por: Sandra Carvalho Em 30 de agosto de 2022
A economia brasileira começou a década de 1970 bem, com crescimento, mas terminou mal. As desigualdades sociais ficaram ainda mais acentuadas e a inflação, incontrolável. A ditadura militar, que tem um dos períodos mais rígidos em relação aos opositores ao regime no início dos anos 70, terminará a década propondo transição para o governo de civis. Minas Gerais é praticamente uma “China brasileira”, experimentando expansão econômica acima da média nacional. É nesse período, por exemplo, que a montadora Fiat se instala no Estado. E Belo Horizonte perde definitivamente os ares de “cidade jardim”, passando a crescer verticalmente.
Esses são alguns pontos abordados nesta quinta reportagem da série “Há 90 anos”, um presente do DIÁRIO DO COMÉRCIO a leitores e internautas em comemoração ao aniversário de nove décadas do jornal.
A economia brasileira inicia os anos de 1970 ainda na onda do chamado “milagre econômico”, com taxas de crescimento do PIB na casa de dois dígitos (11,4% em 1971, 11,9% em 1972 e o recorde, nunca superado, de 13,9% em 1973).
O “milagre econômico” teve início em 1968, quando o então ministro da Fazenda, Antônio Delfim Netto, adotou uma política de reorganização do sistema financeiro e uma retomada do investimento público em infraestrutura, com facilidade de empréstimos externos e apoio ao processo de industrialização. Tudo isso combinado com restrições ao crescimento do salário. E prosseguiu com o I Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), no governo do general Emílio Garrastazu Médici, elaborado pelo ministro João Paulo dos Reis Veloso.
Segundo o pós-doutor em história econômica pela London School of Economics Sérgio Birchal, houve elevação do poder aquisitivo do empresariado e da classe média, o que possibilitou o aumento do consumo interno e da produção de bens duráveis, especialmente eletrodomésticos e automóveis.
O cenário internacional com intenso comércio global favorecia o aumento do investimento do País via endividamento externo. Havia crédito abundante a juros baixos. O Brasil atingiu a posição de nona economia do mundo nos primeiros anos da década de 1970, com um futuro bastante promissor.
“É um período em que o Brasil abre a economia para empresas de fora investir e produzir aqui. Muitas multinacionais se instalando, muito capital estrangeiro vindo para o País e o governo federal capitaneando e dando bastante incentivos a esse processo. Do ponto de vista de instituições, era uma economia que já tinha feito o dever de casa e estava preparada para crescer. Um problema que persistia e que já vinha de décadas anteriores era a inflação alta, estabilizada na faixa dos 10% a 15% ao ano ao longo do período, e a visível desigualdade social”, descreveu Birchal.
Em 1973, porém, houve uma reviravolta no cenário mundial com a primeira crise do petróleo. Países capitalistas hegemônicos entraram em recessão quando a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) triplicou o preço do barril do combustível fóssil. Conforme Birchal, a medida foi uma retaliação dos árabes aos Estados Unidos, pelo fato de os americanos terem apoiado Israel na guerra do Yom Kippur. Também foi motivada pela descoberta de que o petróleo não era um combustível renovável.
Nessa época, último ano do governo Médici, o Brasil importava mais de 80% do petróleo consumido e era preciso tomar decisões importantes: racionar o consumo do combustível e inibir o crescimento ou impulsionar ainda mais o investimento no País para driblar a crise? Essas decisões ficaram a cargo do presidente seguinte, Ernesto Geisel, vencedor das eleições indiretas, que tomou posse em 1974.
O general Ernesto Geisel fazia parte de uma ala do regime militar favorável à transição gradual e entrega do governo aos civis. Ele se elegeu prometendo uma política desenvolvimentista. Diante da primeira crise internacional do petróleo, em vez de reduzir importações do combustível fóssil, a equipe econômica optou por continuar impulsionando o crescimento do PIB, completando a indústria brasileira. O governo então criou o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND).
“O regime militar precisava fazer a economia continuar crescendo até mesmo para manter a sua legitimidade no poder, uma vez que a expansão econômica registrada até ali favoreceu apenas uma elite convidada. O grosso da população não estava sendo beneficiada e já pipocavam denúncias dos abusos autoritários do regime. A forma encontrada para continuar crescendo foi criar um segundo PND”, observou o mestre em Economia e doutor em Demografia pela UFMG Mario Marcos Sampaio Rodarte.
O motor da economia foi então religado com o investimento público novamente induzindo o investimento privado. Se o I PND focou o estímulo à produção de bens de consumo duráveis (eletrodomésticos, automóveis etc.), o II PND estava mais voltado à geração de energia e à produção de insumos básicos (petróleo, alumínio, aço etc) e de bens de capital, como máquinas, ferramentas etc. “Era um plano que visava completar a indústria que já estava posta em São Paulo”, frisou Rodarte.
Nessa época, por exemplo, o Brasil criou o Pró-Álcool, que estimulava a produção do biocombustível e ajudou a amenizar um pouco o problema.
Geisel e equipe utilizaram reservas cambiais e altíssimos empréstimos internacionais para equilibrar a deficitária balança comercial brasileira. Os juros no mercado externo eram baixos. Havia recursos disponíveis, principalmente no mercado europeu. “Com a elevação do barril de petróleo, os árabes, produtores do combustível, acumularam fortunas em um curto período e investiram esses recursos no mercado europeu, num movimento que ficou conhecido como ‘petrodólares’. O governo brasileiro buscou desses recursos externos para investir aqui”, informou o professor Sérgio Birchal.
De fato, o II PND evitou a recessão e gerou expansão econômica após o primeiro choque do petróleo. Mas o crescimento não foi completo. “Destaco aquela velha frase equivocada, colocada na boca de Delfim Netto, de que ‘é preciso fazer o bolo crescer para depois distribuir’. Fizeram uma política para viabilizar o setor produtivo, reduzindo custos, com todo um esquema para arrochar salário-mínimo, diminuir o poder de barganha de sindicatos, vendo sempre o salário como custo. E não habilitaram o grosso da população a participar desse crescimento”, informou Rodarte.
Também não houve grandes investimentos em educação e bem-estar social nos anos de 1970. A prioridade foi o setor produtivo. “Criaram uma sociedade incapaz de auferir os benefícios do crescimento e dar sustentabilidade e continuidade a ele nos anos seguintes. Houve uma armadilha da desigualdade”, avaliou.
E com a riqueza concentrada nas mãos de poucos, sem um mercado consumidor interno, não havia como o regime militar driblar os efeitos da segunda crise do petróleo, que aconteceu em 1979. “Os juros internacionais aumentaram. Houve fuga de investimentos. A dívida externa aumentou, impossibilitando a continuidade daquele modelo. Com inflação descontrolada, o País entrou para os anos de 1980 em crise, uma situação que persistiu ao longo da década seguinte”, informou Sérgio Birchal.
Essa desigualdade ficou escancarada no censo de 1970, divulgado em 1980. “Havia um certo furor dos militares para divulgar o censo para mostrar um Brasil grande. Mas os dados foram ruins para o regime ditatorial. Houve crescimento econômico, mas os pobres não estavam usufruindo dele”, completou Rodarte.
Minas Gerais é o Estado brasileiro que registrou o maior crescimento econômico ao longo da década de 1970. O PIB mineiro avançou mais que o nacional (média anual de 11,67% contra 8,56% do Brasil). Do total de investimentos estrangeiros no Brasil no período, 25% foram destinados a Minas. Esse boom aconteceu porque o Estado reunia naquele momento várias características que favoreceram a expansão.
“O II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) visou completar a industrialização brasileira por meio de um espraiamento para fora de São Paulo e Rio. Minas foi beneficiada por ter uma localização estratégica, uma grande malha rodoviária e estar praticamente equidistante em relação a esses centros econômicos. Por se tratar de um estado populoso, oferecia também grande força de trabalho”, informou Mário Rodarte.
Ações desenvolvidas até ali também contaram. “Minas já tinha uma indústria voltada à fabricação de bens intermediários e bens de produção. Tinha uma boa produção siderúrgica da Usiminas e da Belgo, disponibilidade de energia e abundância de recursos naturais. Havia planejamento e um arcabouço institucional posto. A atuação agressiva do governo do Estado com fortes incentivos, como isenções e, muitas vezes, até doação de terrenos, também contribuiu para isso”, acrescentou Sérgio Birchal.
Nesse cenário, cerca de 30 multinacionais foram atraídas para a região, dentre elas a montadora italiana Fiat, que iniciou as operações em Betim em 1976.
“A vinda da Fiat foi um marco na história da industrialização do Estado. Pela primeira vez, seria fabricado em território mineiro um bem final de altíssimo valor agregado. E também porque estimulou toda a cadeia produtiva do setor automotivo. Atraiu diversas outras empresas para o Estado. A Fiat teve um papel muito importante para a diversificação da economia mineira”, ressaltou Birchal. Segundo o doutor em história econômica, na época, o governo de Minas entrou com capital e, durante muito tempo, foi “sócio” da Fiat, com poder até mesmo para escolha do presidente da montadora.
É na década de 1970 que ocorre a grande mudança de perfil de Belo Horizonte. “Aquela ‘cidade jardim’, arborizada, deixa de existir. Passou a ser a cidade-problema, pelos seus congestionamentos e diminuição de equipamentos urbanos que visavam o bem-estar dos moradores. Houve um crescimento de 44,2% da população na década (de 1,23 milhão de habitantes em 1970 para 1,78 milhão de habitantes no ano de 1980, segundo o IBGE)”, informou Rodarte.
A Capital não tinha como crescer horizontalmente. “Passou a crescer verticalmente, com as casas sendo substituídas de forma acelerada por prédios. Por insuficiência de espaço, há uma grande valorização dos imóveis e as pessoas de baixa renda buscam se acomodar nas cidades do entorno. BH passa a contar com esses municípios para o crescimento econômico. Cada vez mais, precisa-se de transporte público de alta velocidade, mas há uma opção pelos carros, e isso vai diminuir a velocidade do trânsito”.
É uma grande metrópole com problemas característicos. “Não se tomam decisões importantes para melhorar a qualidade de vida da população e BH cristaliza a ideia de um lugar com rápido crescimento econômico, mas com aumento das desigualdades também”, finalizou Rodarte.